segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Máquinas de spins

Uma equipe coordenada pelo físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC (UFABC), determinou quanta energia um núcleo atômico pode ganhar ou perder quando é atingido por um pulso de ondas de rádio.

spins

© Cornell University/LASSP (spins)

A maioria dos pesquisadores estava convencida de que o comportamento do núcleo seria imprevisível. Jamais se conheceriam as probabilidades de o núcleo absorver energia das ondas, tornando-se mais quente, ou de esfriar ao transmitir parte de sua energia para elas.

As novas experiências feitas no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, demonstram que essa troca de energia obedece a leis da física nunca antes testadas no mundo subatômico. Essas leis podem ajudar a entender melhor reações químicas como a fotossíntese das plantas e a determinar quanta energia os computadores quânticos usarão para funcionar. “Esse é o primeiro experimento de uma nova área da física, a termodinâmica quântica”, diz Serra.

Computadores quânticos prometem usar as leis da mecânica quântica para superar exponencialmente o poder de cálculo dos computadores convencionais. Mas quanta energia esse novo tipo de computação gastará na prática? Quanto calor essas máquinas produzirão ao funcionar? Vão precisar de refrigeração? Responder a essas questões é um dos objetivos da termodinâmica quântica.

Perguntas semelhantes pairavam no ar durante a Revolução Industrial, no século XIX. Qual o mínimo de carvão que os fornos precisariam consumir e a que temperatura as caldeiras deveriam chegar para que as máquinas a vapor alcançassem sua eficiência máxima? Os cientistas da época perceberam que tanto o calor quanto a capacidade das máquinas de trabalharem são formas diferentes de uma mesma quantidade física, a energia, que nunca é criada a partir do nada nem destruída, apenas transformada. Ao investigar a conversão de uma forma de energia em outra, eles descobriram as leis da termodinâmica clássica.

De acordo com essas leis, a energia flui espontaneamente de um volume com temperatura quente para outro mais frio. E uma máquina, mesmo que ideal, só pode converter parte da energia disponível na forma de calor em energia capaz de realizar movimentos mecânicos, isto é, realizar o que se conhece em física como trabalho. “A termodinâmica impõe limites a qualquer tecnologia”, diz Serra.

Os engenheiros vitorianos resolveram seus problemas, mas à custa de um pequeno truque. Seus cálculos só funcionavam quando se considerava que as máquinas estavam isoladas termicamente do resto do mundo, trocando pouco calor com o ambiente. Era preciso ainda que esses processos fossem lentos. Mas essas aproximações não servem na maioria das situações que ocorrem na natureza, em muitas reações químicas, por exemplo. Quando é impossível isolar termicamente um objeto de seu ambiente por muito tempo, a temperatura aumenta e diminui de maneira aparentemente imprevisível, ao contrário do que ocorre nos sistemas isolados, onde tudo tende ao equilíbrio.

Foi apenas em 1997 que o físico-químico Christopher Jarzynski descobriu uma expressão matemática capaz de calcular as variações de energia e de trabalho mecânico que acontecem fora do equilíbrio. “A equação de Jarzynski e outros teoremas de flutuação permitem que os químicos meçam em laboratório a variação de energia de uma molécula antes e depois de uma reação”, explica Serra.

O próprio Jarzynski, em colaboração com uma equipe da Califórnia, confirmou sua equação em 2005, observando o trabalho mecânico de uma molécula de RNA esticada e comprimida como uma mola. Serra nota entretanto que, apesar de microscópico, o movimento da molécula de RNA era grande o suficiente para poder ser calculado usando a famosa fórmula derivada das leis da mecânica de Newton: “Trabalho é igual força vezes deslocamento”.

As equações da termodinâmica, seja dentro ou fora do equilíbrio, foram deduzidas usando a mecânica de Newton. Mas as leis de Newton perdem sentido para vários processos que acontecem nas moléculas e para todos os que ocorrem no interior dos átomos por não ser possível medir forças e deslocamentos com precisão. Nessas escalas valem outras leis, as da mecânica quântica. Serra queria saber se equações como a de Jarzinsky ainda valeriam nesse mundo subatômico. Esse conhecimento ajudaria a entender reações químicas como a fotossíntese. Na fotossíntese, moléculas nas células das folhas funcionam como máquinas quânticas que absorvem energia das partículas de luz e a armazenam na forma de moléculas de açúcar. “O processo é muito eficiente, quase não gera calor”, diz Serra. “Estudos sugerem que é um processo quântico.”

Serra, seus alunos e colegas na UFABC tentavam havia algum tempo estudar a termodinâmica quântica em laboratório, junto com a equipe dos físicos Alexandre Souza, Ruben Auccauise, Roberto Sarthour e Ivan Oliveira, que trabalham com a técnica de ressonância magnética nuclear no CBPF. Os dois grupos mantêm uma parceria que já rendeu várias descobertas.

No centro do equipamento no laboratório do CBPF fica um pequeno tubo de ensaio contendo uma solução puríssima de clorofórmio diluído em água. Cada uma dos cerca de 1 trilhão de moléculas de clorofórmio da solução possui um átomo de carbono-13. O núcleo desse tipo de carbono tem uma propriedade quântica chamada spin, que lembra um pouco a agulha de uma bússola magnética e pode ser representada por uma seta. Sob um forte campo magnético paralelo ao tubo, apontando de baixo para cima, as setas desses spins tendem a se alinhar com o campo, metade delas apontando para baixo e metade para cima. O campo magnético também faz com que os spins apontando para baixo tenham mais energia que os spins voltados para cima.

infográfico da máquina quântica

© UFABC/Roberto Serra (infográfico da máquina quântica)

Os físicos manipulam os spins por meio de campos eletromagnéticos, que oscilam com uma frequência de 125 MHz (megahertz); o equipamento precisa ser isolado para não captar as estações de rádio FM que transmitem nessa frequência. Essas manipulações são feitas por meio de pulsos de onda e não duram mais que alguns microssegundos. O experimento acontece tão rapidamente que é como se, por alguns instantes, cada átomo de carbono no tubo de ensaio estivesse isolado do resto do Universo, submetido a uma temperatura muito próxima do zero absoluto (-273º Celsius). Os pesquisadores conseguem diminuir ou aumentar a diferença de energia entre os spins para baixo e para cima quando reduzem ou aumentam a amplitude de suas ondas de rádio. Quando essa mudança de amplitude é muito rápida, os spins saem de seu isolamento térmico e começam tanto a absorver energia das ondas de rádio – situação em que as ondas realizam trabalho sobre os spins – quanto a transmitir parte de sua energia para as ondas, realizando trabalho sobre elas. “Isso é muito difícil de medir, pois os spins dos carbonos podem trocar energia de quatro maneiras diferentes, todas acontecendo ao mesmo tempo, de maneira probabilística”, explica Serra. “Conheci um grupo na Alemanha que tentou fazer esse mesmo experimento por cinco anos sem sucesso.”

O que impediu o sucesso do grupo alemão, segundo Serra, foi o fato de os físicos tentarem medir diretamente quantas vezes a energia era emitida ou absorvida pelos spins. “O erro acumulado nessas medidas era tão grande que no fim não conseguiam determinar nada”, explica.

A solução chegou mais cedo para Serra, em fevereiro de 2013, quando o físico Mauro Paternostro, da Queen’s University, em Belfast, Irlanda, apresentou um seminário na UFABC sobre propostas inéditas de se observar o trabalho produzido por partículas de luz de maneira indireta. Logo Paternostro, atualmente professor visitante na UFABC, e Laura Mazzola, sua colega em Belfast, começaram a discutir com Serra, Auccauise e o estudante de doutorado na UFABC Tiago Batalhão como adaptar essas técnicas para observar o trabalho dos spins de carbono indiretamente. Com John Good, da Universidade de Oxford, Inglaterra, a equipe descobriu um modo esperto de usar os spins dos núcleos de hidrogênio das moléculas de clorofórmio para espiar o que acontece com os spins dos átomos de carbono enquanto realizam trabalho, sem interferir no processo.

A precisão do experimento foi suficiente para registrar variações de temperatura nos spins de carbono da ordem de bilionésimos de graus e verificar que a equação de Jarzinsky vale na escala subatômica. Outro resultado interessante: os spins de carbono possuem uma tendência maior de extrair energia das ondas de rádio quando a amplitude do pulso de onda é reduzida. A tendência se inverte quando a amplitude de onda é aumentada: os spins tendem a transferir energia para as ondas, ou seja, fazer trabalho sobre as ondas.

“Podemos explorar essa diferença para criar uma máquina térmica quântica”, diz Serra. A máquina funcionaria alternando pulsos de amplitude reduzida e aumentada entre dois estados de equilíbrio térmico, cada um com uma temperatura diferente. A máquina funcionaria de maneira parecida com a de um motor a combustão, que realiza trabalho mecânico com parte da energia química transformada em calor com a explosão do combustível.

A máquina de spins teria pouca utilidade: o trabalho produzido forneceria uma energia ínfima para as ondas de rádio, apenas suficiente para mexer o spin de um núcleo atômico qualquer. Serra está mais interessado em medir quanta energia ela gasta e quanto calor ela dissipa durante seu funcionamento.

“A técnica aplicada nesse experimento tem grande potencial”, diz o físico Lucas Céleri, da Universidade Federal de Goiás, que planeja observar a termodinâmica de uma única partícula de luz em parceria com os físicos Paulo Souto Ribeiro e Stephen Walborn, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Avanços experimentais são muito raros na termodinâmica quântica, devido à necessidade de controlar o sistema quântico e seu isolamento do ambiente.”

Fonte: FAPESP (Pesquisa)

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